quinta-feira, junho 02, 2005

Portugal, este país onde habito...

É com espanto, mas nunca com resignação, que descubro, no Portugal de Eça de Queiroz, o de 1871, os mesmos vícios, as mesmas vicissitudes, deste país onde habito.
É a política, a educação, são os patrões, os sindicatos, o povo, a justiça, a economia, a Europa, o défice (qual mostrengo, que assombra o Cabo da Europa, que não conseguimos alcançar). O país fundado na notícia de ocasião que preenche o dia - que outras preocupações existirão, mas quem vier a seguir que resolva; é este estar sem querer, este existir sem pretender, estas dicotomias improdutivas no pensamento de quem gere a coisa pública, esta miséria que tudo engole.
Este é o povo que conseguiu fazer sorrir Abril, que plantou flores nos canos estéreis das espingardas, que viveu a ditadura, e sobreviveu.
Ora leiam...!






( Portugal)

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Portugal, não tenho princípios, ou não tenho fé nos seus princípios, não pode propriamente ter costumes.

Fomos outr´ora o povo do caldo da portaria, das procissões, da navalha e da taberna. Comprehendeu-se que esta situação era um aviltamento da dignidade humana: e fizemos muitas revoluções para sahir d´ella. Ficamos exactamente em condições identicas. O caldo da portaria não acabou. Não é já como outr´ora uma multidão pittoresca de mendigos, beatos, ciganos, ladrões, caceteiros, que o vae buscar alegremente, ao meio dia, cantando o Bemdito; é uma classe inteira que vive d´elle, de chapéo alto e paletot.

Este caldo é o Estado. Toda a nação vive do Estado. Logo desde os primeiros exames do lyceu a mocidade vê n´elle o seu repouso e a garantia do seu futuro. A classe ecclesiastica já não é recrutada pelo impulso de uma crença; é uma multidão desoccupada que quer viver á custa do Estado. A vida militar não é carreira; é uma ociosidade organisada por conta do Estado. Os proprietarios procuram viver á custa do Estado, vindo a ser deputados a 2$500 réis por dia. A própria industria faz-se proteccionar pelo Estado e trabalha sobretudo em vista do Estado. A imprensa até certo ponto vive também do Estado. A sciencia depende do Estado. O Estado é a esperança das famílias pobres e das casas arruinadas. Ora como o Estado, pobre, paga pobremente, e ninguém se pode libertar da sua tutela para ir para a industria ou para o commercio, esta situação perpetua-se de paes a filhos como uma fatalidade.

Resulta uma pobreza geral. Com o seu ordenado ninguém pode accumular, poucos se podem equilibrar. D´ahi o recurso perpetuo para a agiotagem; e a divida, a lettra protestada, como elementos regulares da vida. Por outro lado o commercio soffre d´esta pobreza da burocracia, e fica elle mesmo na alternativa de recorrer tambem ao Estado ou de cahir no proletariado. A agricultura, sem recursos, sem progresso, não sabendo fazer valer a terra, arqueija á beira da pobreza e termina sempre recorrendo ao Estado.

Tudo é pobre: a preoccupação de todos é o pão de cada dia.

Esta pobreza geral produz um aviltamento na dignidade. Todos vivem na dependencia: nunca temos por isso a attitude da nossa consciencia, temos a attitude do nosso interesse.

Serve-se, não quem se respeita, mas quem se vê no poder. Um governador civil dizia: - «É boa! dizem que sou successivamente regenerador, historico, reformista!... Eu nunca quiz ser senão - governador civil!» Este homem tinha razão, porque mudar do sr. Fontes para o sr. Braamcamp não é mudar de partido; - ambos aquelles cavalheiros são monarchicos e constitucionaes e catholicos. A desgraça é que, se em Portugal existissem partidos republicanos, monarchicos, socialistas, aquelle homem, assim como fôra sucessivamente reformista, historico e regenerador, - isto é, as cousas mais eguaes, seria republicano, monarchico e socialista, - isto é, as cousas mais contradictorias.

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in As Farpas, junho 1871